BORDAIS, Lourdes Flores. Mariátegui, los comunistas y los mineros del centro. 1 a edição. Lima, Peru. Editorial Ande: 2021, pp. 197. 1a edição. Lima, Editorial Ande, 2021, 100pp.
O livro de Lourdes Flores Bordais, intitulado Mariátegui, los comunistas y los mineros del centro, vem ao público num momento conturbado da luta de classes no Peru e, de modo geral, em toda a América Latina. A conjuntura requer boas análises, boas compreensões da composição das classes sociais, do papel do capital imperialista e do latifúndio em cada formação social no continente. O livro de Bordais, a despeito de seu caráter historiográfico e sociológico circunscrito aos anos 1920 e 1930, tem a felicidade de iluminar pontos da história peruana latentes como tragédia hoje. Nos proporciona uma breve sistematização da história do movimento operário mineiro do Peru, seu início e primeiros anos de organização e luta sindical na Sierra Central. Além disso, aprofunda o entendimento da vida e da obra de José Carlos Mariátegui, um dos principais marxistas latino-americanos. Como afirma Michael Loẅy no prefácio desta edição: “[...] temos, pela primeira vez, um estudo profundo de um capítulo pouco conhecido da vida do Amauta: seu compromisso com a luta dos mineiros peruanos” (Bordais, 2021, p. 11).
Na introdução, Bordais esboça os elementos essenciais da caracterização da formação social peruana feita por Mariátegui e explicita os principais percursos investigativos que desenvolverá no livro. Para ela, o Amauta entendia a formação social do Peru como semifeudal e semicolonial, mas também observava o avanço de traços capitalistas em algumas regiões e setores produtivos; em síntese: a) os grandes capitais se direcionavam ao setor agroindustrial, nas fazendas de açúcar da costa norte e no setor mineiro da Sierra Central; b) a semifeudalidade é vista por Mariátegui na sobrevivência do latifúndio e do gamonalismo, além das formas servis de exploração permanentes desde a colônia; c) a condição semicolonial seria a consequência do desenvolvimento do capitalismo na etapa imperialista, isto é, a inversão de grandes capitais nos países periféricos (pp. 20-21). Parte-se da hipótese de que essa caracterização geral de Mariátegui seria condizente com seu entendimento a respeito do papel central dos mineiros na luta de classes no Peru. O que pode ser confirmado também através da intensa produção e participação ativa do Amauta na organização dos mineiros entre 1924 e 1930 juntos aos comunistas. Segundo a autora, Mariátegui levava em consideração todo o processo de entrada do capital imperialista no Peru por meio da Cerro de Pasco Minning Company, o processo de proletarização de indígenas e camponeses e o processo de concentração de terras ao visualizar nos mineiros a fração da classe trabalhadora essencial para a construção do socialismo (p. 21-23).
O primeiro capítulo, intitulado Formación de la clase obrera minera en el Perú, nos apresenta a gênese, desenvolvimento e a decadência da mineração colonial no Peru, buscando compreender a constituição, no seio desse processo produtivo, da classe trabalhadora peruana. A autora explica que em um primeiro momento, a mineração criou “uma própria dinâmica comercial interna, quase autossustentável; chegando a vincular grandemente os pontos mais importantes da região e gerando, nesse processo, extensas redes de comércio” (p. 31). Já durante a passagem do século XVIII para o XIX, se tem início a queda na mineração em algumas regiões, ao passo que a dominação política espanhola perde espaço para uma dominação criolla que “não possuía um projeto político e econômico de maior transcendência” (p. 34). O Peru, assim como outros países da América Latina, era lançado no mercado mundial como consumidor de mercadorias manufaturadas, e a independência não significou uma ruptura com o tipo de inserção subserviente na divisão internacional do trabalho.
Entre 1821 e 1900, o período republicano, se expressa com maior violência do Estado o processo de expropriação das terras de camponeses e indígenas (antes sob formas coletivas de posse). Os indígenas agora despossuídos de terra se viam sob as garras da servidão ou sob formas de trabalho com baixos salários (p. 35). Diferente da mineração colonial, a mineração oitocentista contava como uma ferrovia que conectava os principais pontos de exploração na Sierra Central até o porto de Callao (p. 38). A independência, embora tenha abolido a mita mineira, produziu outro sistema para a coerção da força de trabalho: o enganche. Ele consistia em endividar indígenas, fazendo com que se deslocassem de suas pequenas produções no campo para as imensas altitudes andinas nas minas a fim de que quitassem as dívidas; estas, por sua vez, os transformavam em servos (p. 40). Nesse momento, o trabalho estacional era predominante, o que por sua vez, não possibilitava a consolidação de uma classe trabalhadora operária; muitos indígenas eram ainda camponeses (p. 41).
Entre 1901 e 1928 é construída a Cerro de Pasco Mining Company, depois transformada em Cerro de Pasco Copper Corporation; uma nova fase da exploração de minérios no Peru, dada sob capital inglês (p. 42). O capital imperialista reformulou a estrutura agrária do país, se instalou com grandes mineradoras onde havia pequena mineração, despojou indígenas de suas terras, comprou fazendas produtivas e tornou terras improdutivas; ocorreu uma verdadeira concentração de terras na economia de enclave que se tornara o Peru (p. 44). Bordais afirma que as relações sociais antes predominantemente pré-capitalistas, neste período tornam-se propriamente capitalistas (p. 45).
Bordais finaliza o capítulo sintetizando as principais características do período em que operários mineiros como categoria e classe se constituíram no Peru, a saber: a) o período de passagem da condição de camponês para a de proletário; b) introdução do capital imperialista e formação de uma economia de enclave; c) modificação da capacidade técnica para melhor extração de minérios e exploração da força de trabalho se comparado a época colonial; d) avanço de relações sociais propriamente capitalistas; e) colaboração das classes dominantes peruanas com o imperialismo; f) o mineiro enquanto indígena que foi proletarizado trazia consigo uma visão de mundo particular que produzia um entendimento a respeito do trabalho do mineiro como um “terrível pesar”, que posteriormente contribuiria para a organização política mineira; h) até 1928 os mineiros não possuem suas demandas articuladas às demandas gerais de toda a classe trabalhadora peruana, não possuem vínculos com demais trabalhadores do país; realidade que mudaria anos depois (pp. 53-54).
Já no segundo capítulo, intitulado El pensamiento político de José Carlos Mariátegui, los mineros y su organización, a autora investiga a associação dos comunistas aos mineiros do Centro na criação dos primeiros sindicatos, observando a práxis política e a liderança de Mariátegui, demonstrando como seu entendimento da centralidade dos mineiros para a luta de classes no Peru vai se formando (p. 57). Em um primeiro momento, retoma a caracterização da formação social peruana feita por Mariátegui, indicando que o autor não produz uma análise baseada nas dicotomias moderno e arcaico (p. 63). Neste sentido, a autora contraria a caracterização feita por Jacob Gorender, quando este aloca Mariátegui entre teóricos como Ignácio Rangel e Nelson Werneck Sodré, propulsores do “mecanicismo dualista” (Gorender, 2016). Estamos de acordo com a definição feita por Gorender a respeito do dualismo na concepção de Mariátegui, mas entendemos que Bordais expõe uma importante sistematização que permite ao leitor compreender que, embora o Amauta visse semifeudalidade e semicolonialidade no Peru, não defendia uma revolução democrática e nacional, mas sim uma revolução socialista. Seu dualismo não o impelia, como aconteceu com Rangel, ao desenvolvimentismo como alternativa para suplantar o setor mais “atrasado” na estrutura dual.
Em um segundo momento, Bordais se debruça na história do movimento operário e na articulação feita pelo Amauta, observando, em síntese, como o autor compreendia e articula a fração de classe por ele entendida como revolucionária. Mariátegui participa do Segundo Congreso Obrero Local, em 1927, e defende uma Frente Única entre os trabalhadores que pudesse lançar as bases para a criação de uma confederação geral do trabalho entorno de um programa classista que reunisse os sindicatos e associações do Peru (p. 69). Em outubro do mesmo ano funda o Partido Socialista do Peru (p. 70-71).
Toda a movimentação operária mineira era registrada e analisada pelo autor no periódico quinzenal Labor. Mariátegui acompanhou e denunciou a Tragédia de Morococha, na qual mais de 26 mineiros perderam a vida em 5 de dezembro de 1928, pelo descaso criminoso diante das reivindicações do movimento operário da Cerro de Pasco Copper Corporation (p. 80-81). Isso vai tornando mais nítido que mineiros possuíam papel central, para Mariátegui, não apenas por sua posição no centro da valorização do capital, mas por serem indígenas e terem contato com a massa de trabalhadores indígenas de outros setores (p. 86). Em suma, a cultura originária desses indígenas, segundo Mariátegui, poderia ser empregada na construção do socialismo (p. 86).
No terceiro e último capítulo, intitulado Los comunistas y la organización sindical minera (1928-1931), a autora demonstra a diferença entre a tática assumida por Mariátegui e a tática assumida pelos membros do Partido Socialista Peruano, tornado Partido Comunista, após a morte do Amauta. Mariátegui entendia que o momento era para organização e educação política dos operários mineiros e por isso mantinha contato com experiências organizativas e educativas geradas pela própria classe trabalhadora, tais como a Librería Obrera administrada pelo italiano Carlos L. Pezzutti por volta de 1926 e os Centros Escolares Obreros de Morococha entre 1924 e 1930. O trabalho de Mariátegui consistia sobretudo no assessoramento dos mineiros para a construção de formações com orientação socialista (p. 97).
Julio Portocarrero que havia sido eleito para delegado para a “Confederación General de Trabajadores del Perú” (CGTP) e que havia regressado da Primeira Conferência Comunista Latino Americana em Buenos Aires fora preso em março de 1930, o que gerou um inflado movimento para sua libertação. A sua saída em abril 1930, poucos dias depois do falecimento de Mariátegui, marcaria a reorientação do Partido Socialista. Um elemento essencial seria justamente as críticas feitas pela Internacional Comunista (1919-1943) (IC) ao PSP de Mariátegui e sua “maneira ‘diferente’ de analisar a situação das massas exploradas na América Latina” (p. 112). Eudocio Ravines, outra liderança do PSP, a despeito da não concordância de Mariátegui com a mudança do nome de PSP para PCP com todo seu dogmatismo dá novos direcionamentos ao Partido, agora muito mais ligados às diretrizes da IC (p. 113). O PSP passou a abrir células, deixando de lado o trabalho pedagógico, o que, por sua vez, mantinha os trabalhadores sem coesão, relegados a demandas diversas e compreensões diversas sem o aprofundamento da formação política (p. 118)
A CGTP já havia sido dissolvida, e quando membros do PCP saem da cadeia, após inúmeras repressões pós Congresso, o contexto político do Peru já era outro. A Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) de Haya de la Torre conquistava mais espaço entre os trabalhadores e se lançava de vez como um partido político. O direcionamento das “frentes” para combate do nazifascismo desde a IC fiz com que o PCP tomasse rumos parecidos, fazendo alianças com setores do governo, deixando de lado de vez a organização e educação política dos operários (pp. 130-131).
Em suas considerações, Bordais demonstra como os comunistas do PCP a despeito das formulações teóricas de Mariátegui, após sua morte, direcionaram o Partido para a tática das Frentes Únicas tomada como estratégia, distorcendo por pressão ou inexperiência a análise da realidade peruana. Os trabalhadores estavam ainda em processo de produção de consciência de classe e formação política, como analisava pioneiramente Mariátegui, não estavam prontos para uma revolução que era pressionada desde a IC (pp. 132-137).
Em síntese, para o leitor que tenha acesso ao idioma castelhano, o livro de Lourdes Flores Bordais possibilita uma conjunção de reflexões acerca de temas candentes para os socialistas e comunistas no século XXI. Se por um lado, resgata a trajetória política e as formulações teóricas à ela correspondentes do principal marxista latino-americano, evidenciando que sua produção teórica não era desafeita a organização classista, mas antes de tudo era organizativa e em função da organização autônoma e classista dos trabalhadores – o que a insere na disputa pela memória e pela formulação teórica de Mariátegui em disputa hoje com nacionalistas, membros heterogêneos dos PC’s no Peru, decoloniais e mesmo, contraditoriamente, com reabilitadores do dogmatismo estalinista no Peru ou em toda a América Latina, responsável pela marginalização do Amauta ante a Internacional Comunista. Por outro lado, tem a capacidade de transmitir ao leitor pouco iniciado na história do Peru, a questão da violência do Estado com que a burguesia associada ao imperialismo submete a classe trabalhadora peruana, tendo a sensibilidade de perceber a continuidade dessa violência mesmo sob a troca de “patrões” estadunidenses, canadenses ou chineses. O que, por sua vez, chama atenção dos olhares ao Peru para os que quiserem compreender efetivamente o que é a China e quais as suas relações com os capitalismos dependentes na América Latina. Por fim, em um momento como o de intensas manifestações populares, sobretudo em regiões do interior do Peru, contra o governo ilegítimo de Dina Boluarte, o livro proporciona uma pequena recopilação do histórico inicial de lutas dos mineiros na região da Sierra Central do Peru, evidenciando não apenas os massacres promovidos pela violência da burguesia, como os saldos políticos e organizativos de uma experiência que reuniu organicamente comunistas e trabalhadores da mineração, como que apontando tarefas essenciais aos comunistas que hoje assistem a novos massacres da velha burguesia dependente.
Henrique Roberto Figueiredo*
Referencias
Gorender, J. (2021). O escravismo colonial. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo.
* Mestrando em História Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) como bolsista CNPq e graduado em História-América Latina na Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Contato: hrfigueiredo2016@gmail.com